Houve um tempo glorioso na minha família materna, pródigo de emoção, tragédia e fervilhares. Num espaço de tempo que não me parece muito extenso, a tia Emilia casou em segundas núpcias com o tio Vale, o primo Félix teve um acidente de moto e ficou comatoso para lá de um mês, a tia mais nova engravidou ainda solteira e a tia-avó Felicidade arrumou as trouxas e rumou por iniciativa a um lar recém inaugurado no centro da cidade.
Ora, nesse tempo, eu e o primo, partilhávamos a idade, uns 11 ou 12 anos, e uma tendência para a demência que escapava aos mais incautos, mas que se notava um bocadinho caso reparassem em nós com mais atenção. O que é mais maravilhoso é que dada a quantidade de emoções que se viviam naquela época, toda a família deixou de reparar em nós e podemos desenvolver a nossa dupla Bonnie and Clyde com todo o seu esplendor. E se, nos primeiros tempos nos bastava irromper pelo lar de terceira idade e pescar todos os peixes dos aquários das salas de costura e pintura dos velhotes, levando-os à loucura e a tentativas várias de suborno com rebuçados de mentol que cheiravam a queijo, com o passar dos anos evoluímos para actividades mais refinadas. De todas a que recordo com mais emoção eram as tardes de domingo, em que as mulheres se reuniam em casa da avó, ora para rezar pelo primo em coma, ora para dizerem mal do tio Vale entrado na família com fortuna mas com maus modos, não tendo nunca conquistado a família. Ora, nesse tempo, dizia eu, descobri o prazer da poesia e o primo descobriu o prazer de disparar com uma espingarda de pressão contra as vacas do senhor Maia, o latifundiário lá do sítio. Comungávamos esses pequenos prazeres, eu de caderno nos joelhos, a rimar tristeza com avareza e alegria com nostalgia e ele a gritar a cada dois minutos: olha a puta da vaca, já se fodeu. Nunca ninguém se preocupou connosco, as vacas sobreviveram todas, os cadernos de poesia arderam e ainda hoje acredito que, nunca ninguém descobriu que esse tempo mágico, fez parte das nossas vidas.
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